Um apartamento no centro
O apartamento pequeno no centro da cidade de Curitiba combinava com a personalidade de Júlio César. Tímido, porém abarrotado de segredos. Ele havia sido uma incógnita para sua família desde o nascimento. Ninguém conseguia decifrar a personalidade do irmão do meio.
Já na entrada da pequena residência, um espelho pesado com bordas douradas cheias de rococós. O carpê velho cheirava a pó. A pequena sala, completamente tomada de móveis. Um sofá, duas poltronas, uma mesinha de centro, uma mesa com quatro cadeiras, um armário alto, uma estante de TV comprida e um biombo japonês. Além dos móveis, quadros, enfeites, abajures, estátuas, penduricalhos, tudo no plural. Era difícil andar, mais difícil ainda deveria ser para Júlio César andar, já que com a idade desenvolveu um problema nas pernas.
Por trás das pesadas cortinas rosadas, havia um porta de correr. Era a passagem para a varanda. Do lado esquerdo uma churrasqueira, sem sinais de uso e usada como depósito de sacolas de supermercado. Os vidros, passagem para o mundo exterior, sujos, turvos, travados.
O pequeno quarto não tinha cama, apenas um sofá pequeno. Júlio César era um homem de mais de 1m80 de altura, mas dormia em um sofá, sem roupa de cama. Os armários de madeira escura iam de parede a parede e abri-los era risco de um desabamento de bugigangas.
Imagens religiosas decoravam todo o ambiente. Anjos na parede, terços na estante, estátua de Maria na mesinha ao lado do sofá e o que mais chamava atenção: um quadro gigante de Maria emoldurado em uma moldura dourada, grossa, trabalhada, retorcida.
As gavetas eram cheia de papéis, documentos, exames médicos e cartas. Cartas antigas, cartas novas, cartas para a família e cartas de amor. Júlio César se correspondia com outro homem, Carlos, há anos. Ninguém sabia. Todo mundo sabia. O septuagenário que ali vivia em um apartamento pequeno e sufocado, viveu quase que no anonimato.
Júlio César era professor, irmão, tio e tio-avô. Gay. Nasceu assim e morreu assim. Tentou mudar, guardava notícias que falavam que homossexualidade era doença e outras que era natural em uma guerra com sua própria consciência.
Carlos não sabe de sua morte, ou talvez Carlos já tenha morrido também. Um fim indigno para uma história de amor que a ninguém fez mal. Talvez nunca tenham se beijado ou se abraçado. Talvez nunca tenham tido a oportunidade.
O apartamento pequeno, abarrotado e solitário infelizmente combinava com a personalidade de Júlio César. Ele nunca foi incógnita, estava apenas com medo de abrir o armário pelo risco de desabamento.