Crônicas da minha vida #03: também já fui uma criança
Quando eu era criança eu passava muito tempo olhando o nada pensando na minha própria existência. Em como era absurdo existir de verdade. Ficava pensando nisso até me dar mal estar e precisar me forçar a esquecer.
Quando eu era criança eu gostava de brincar que era secretária de médico, atender ligações, marcar consultas, liberar exames, mexer em papelada. Algo sobre estar ocupada e ter muitas coisas na mesa e nas mãos parecia muito adulto para mim.
Quando eu era criança eu tinha medo de alagamento e passei meses sem dar descarga sem a minha mãe do lado apavorada com a possibilidade do meu apartamento encher de água.
Quando eu era criança eu desenvolvi síndrome do pânico. Fiquei em uma sala separada das minhas amigas na escola e meu mundo caiu. As que estavam na minha sala brincavam de coisas que eu não gostava, então eu criei pavor de ficar sozinha no recreio.
Quando eu era criança eu tinha muito medo do escuro. Medo do que poderia estar escondido fora do alcance dos meus olhos. Deitava na cama e ficava com medo embaixo das cobertas pensando o que poderia estar me esperando na escuridão da sala.
Quando eu era criança eu passei noites tendo dificuldade para dormir sendo remoída pelo sentimento de culpa. O motivo? Eu tinha desenhado maquiagem nas minhas barbies e achava que se minha mãe visse iria brigar comigo por ter destruído um brinquedo caro.
Quando eu era criança gostava de escrever pequenas cartas para meus pais e para meu irmão dizendo o quanto os amava e o quanto eles eram especiais.
Quando eu era criança eu tentei me convencer de que era a próxima virgem Maria porque só isso explicaria eu ter uma barriga grande sendo criança.
Quando eu era criança eu passava muito tempo olhando o nada pensando na minha própria existência. A ciência de que eu era uma pessoa real, com uma vida real me sobrecarregava. “Eu existo”, eu pensava enquanto sentia uma onda de ansiedade percorrer meu corpo.
Eu fui uma criança um dia.